O Meu Sonho [Concurso Literário 2004/2005]
E lá estava eu deitada na cama do meu pensamento. A luz do sol que entrava pela única janela do meu quarto ardia-me na face esquerda. Abri os olhos e uma vez acordada bati duas palmas para a luz se apagar. Tudo escuro! Estava tudo completamente negro como breu. Acendi então uma pequena chama que pairava no ar iluminando o quarto com uma luz fraca. O meu quarto era pequeno, com cerca de um metro cúbico, e não tinha portas… e agora também não tinha janelas. Os lençóis da minha cama estavam todos caídos no chão. Devo ter tido um pesadelo, pensei. Estava a sentir-me um pouco claustrofóbica ali dentro, espreguicei-me e o meu quarto espreguiçou-se comigo.
Que chatice! Não se fazia nada ali, naquele lugar tão pouco entusiasmante.
Já sem a minha cama no quarto, abri um buraco negro no chão, mesmo por debaixo dos meus pés, e caí. O vento fresco levantava-me o cabelo loiro e comprido. Devia estar a cair a uns duzentos quilómetros por hora, até que uma luz surgiu no fundo do túnel vertical.
No meio de uma estrada alcatroada, aí uns cinco metros acima da linha contínua, havia no ar um círculo preto. Como um míssil em direcção ao solo fui eu que saí de lá. Parei bruscamente ficando com as pontas dos pés a um milímetro de tocar no chão alcatroado, tão negro como o buraco de onde eu tinha saído. O buraco fechou-se acima da minha cabeça. Um carro que parecia um foguetão dirigia-se contra mim a uma velocidade explosiva. Eu achei-o engraçado e acenei-lhe. Dobrando-se todo como se fosse de esponja, contornou-me dizendo-me olá quando passou à minha esquerda.
Flutuando no ar decidi seguir o meu caminho. Fui para o passeio brilhante para não incomodar os Srs. Motorizados. Ainda era muito cedo e não havia muita gente fora das suas casas. Em ambas as margens da estrada, para lá dos grandes passeios brilhantes, apenas se viam árvores com as suas raízes cravadas na relva e flores de todas as cores. No mesmo passeio em que eu ia, mas no sentido contrário, duas crianças saltitavam deslocando-se rapidamente. Ao saltarem por cima de mim disse-lhes bom dia. Com a brincadeira os miudinhos retribuíram-me o olá dez segundos depois. Eu sorri-lhes. À minha direita no meio do ar e no meio da rua formava-se outro círculo negro igual ao meu. Com curiosidade esperei para ver quem era. Ao fundo da rua vi uma locomotiva a vapor aproximar-se. Continuei a olhar. No momento em que a máquina a vapor ia a passar uma senhora idosa caiu do buraco, aparando a queda com a velha bengala de madeira. Tinha cabelos curtos da cor da neve, a face era enrugada e era meia corcunda. Eu decidi dizer-lhe olá. A locomotiva travou encolhendo-se como uma harmónica não batendo por pouco na senhora.
− Bom dia! − disse ela à máquina com uma voz trémula e rouca.
− Bom dia Avozinha! − respondeu a Sra. Locomotiva com a sua voz suave e doce.
A Avozinha veio de seguida ter comigo.
− Olá menina, que roupa bonita que tens!
− Muito obrigada Sra! Ainda bem que gosta.
Eu estava vestida com uma camisa verde-clara, da cor dos meus olhos, por cima de uma t-shirt branca e tinha uma saia cor-de-rosa que me tapava os joelhos. As unhas dos meus pés nus estavam pintadas de verde para condizer com a camisa e as unhas curtas das minhas mãos estavam pintadas de rosa para condizer com a minha saia.
− Continuação de um bom dia menina. − Despediu-se a Avozinha.
Eu agradeci e, alegremente, continuei o meu caminho.
Já tinha apanhado ar fresco que chegasse e então parei e estalei os dedos. Tudo o que me rodeava ficou desfocado como se a chuva tivesse molhado toda a paisagem de tinta. Caiu uma manta negra escurecendo tudo à minha volta. De seguida, como o escorrer da água numa janela, surgiram à minha volta casas e lojas. Sem tocar no chão brilhante entrei numa das lojas. Vesti um maravilhoso vestido negro, o primeiro que vi, e fui ver-me ao espelho. Deslumbrei-me com a mulher elegantemente proporcional e bela que lá vi, dentro daquele vestido preto que me tapava os tornozelos. As minhas unhas pintaram-se automaticamente de negridão. Gostei e saí assim vestida.
Lá fora os pássaros cantavam:
Que lindo dia
Que alegria
Que bela que é
Toda esta harmonia
Caí para trás em cima da relva verde e macia. A sombra das enormes árvores protegia-me da quente luz do sol. Fechei os olhos, inspirei lentamente e expirei. Uma sensação silenciosa de tranquilidade invadiu-me corpo e alma. Estava tudo escuro outra vez. O silêncio foi quebrado pelo som das ondas. Gotículas de água refrescavam-me a face. Abri os olhos e vi o mar. Estava deitada num enorme rochedo e tudo o que via à minha volta era mar. Senti-me feliz. Levantei-me e juntei as minhas mãos encostando-as ao meu peito. Subitamente dois golfinhos que saltaram passando um à minha esquerda e outro à minha direita. Voltei-me para os ver entrar novamente na água. O meu vestido, bem como as minhas unhas e os meus olhos, estavam agora azulados pelo mar. Eu já não flutuava, tinha as plantas dos pés pousadas na rocha cinzenta. À minha frente o pôr-do-sol ofuscava-me os olhos. Voltei a flutuar para ir ter com ele. Atravessei as águas, tocando-lhes com as pontas dos meus pés e quando cheguei à beira do sol, despedi-me dele com um adeus. Ele sorriu e deitou-se nas águas que escureceram repentinamente.
Olhei para a bela lua cheia que estava no céu e sorri-lhe. O meu vestido voltou a escurecer com a noite. Olhei em toda a minha volta já um pouco cansada. Quis-me sentar na lua e assim o fiz. Dei um salto e sentei-me deixando os meus pés a balançar. O vento agitava-me o vestido e o cabelo enquanto eu pensava nisso mesmo. Só desejava que aquela noite nunca mais acabasse. De repente os dois golfinhos surgiram por trás de mim assustando-me. Dei uma gargalhada enquanto os via mergulhar na escuridão das águas. Tive dificuldade em parar de rir. Foi um belo dragão vermelho que passou por cima da minha cabeça que me abafou o riso. Após esvoaçar uns segundos pelos ares, lançou chamas quentes pela boca e desapareceu no horizonte. Eu estava muito feliz.
As lágrimas vieram-me aos olhos, escorriam-me pela face. Começou a chover. Soltei um suspiro e levantei-me. Já não chovia, já não havia lua, já não havia mar, já não havia tudo, já não havia nada. Senti um nó na garganta. Estava triste e contente. Aquele dia apagava-se do meu pensamento como se uma borracha estivesse a apagar um desenho a lápis. A escuridão que me rodeava ficou coberta por uma neblina ainda mais negra que ela própria. Baixei a cabeça como se soubesse o que estava a acontecer.
E lá estava eu deitada na cama da minha humilde casa. A luz do sol que entrava pela janela do meu quarto ardia-me na face esquerda. Não me lembrando de nada do que aconteceu, apenas sentia uma alegria dentro de mim, alegria que me iria dar forças para mais um intenso dia de vida real.
FIM!